terça-feira, 13 de agosto de 2024

Princípios Blorb - O jogo focado na preparação

De autoria de Sandra Snan, do excelente blog idiomdrottning, o texto "Blorb Principles" de 2020 é um manifesto com princípios de jogo com foco na preparação e interação com o mundo ficcional. O texto teve impacto relevante dentro de diversas comunidades, principalmente no contexto OSR, gerando respostas e textos complementares de blogs como Rise Up Comuns e Bastionland.

Nesse post apresentamos uma tradução do Blorb Principles autorizada pela autora.

Texto original (em inglês) por Sandra Snan. Disponível aqui.
Tradução por Nicole Mattos, revisão por Renan S. e Ícaro Agostino.

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Princípios Blorb

Nunca Prepare um Enredo


Blorb é um estilo de jogo focado na preparação. A preparação é fundamental, mas nunca prepare um enredo.

Prepare entidades, como locais, inimigos, aliados, itens, recompensas. Porte-Monstre-Trésor¹.

O que acontece deve ser emergente, e não roteirizado. Eventos devem ser algo que podem acontecer (pela mecânica, rolagem de dados, etc), não que sempre vão acontecer, ou pior, que o Mestre decide que tem que acontecer.

¹Porte-Monstre-Trésor: termo em francês que significa "porta-monstro-tesouro", comumente associado a formas de jogar RPG como dungeon crawling, com foco em explorar, coletar itens e evoluir personagens. 

Nada de Papel depois de Ver Pedra


Quando você joga “Pedra, Papel e Tesoura” é obviamente uma trapaça agir um pouco mais lento e escolher papel depois de ver pedra. Ambos jogadores devem escolher simultaneamente.

Se você secretamente escrever sua escolha antes, você não precisará ser assertivo quanto ao timing. Sua escolha está feita bem antes de você ver a pedra.

A ponto de ser suficiente que uma pessoa escreva sua escolha, desde que antes do outro anunciar a sua própria escolha.

Blorb é baseado nisso. É por isso que você precisa escrever “essa sala tem 3d6 esqueletos” antes do personagem do jogador ir lá. Sem espaços quânticos. Você deve deixá-los fazer escolhas reais.

Três Camadas de Verdades


O Mestre é questionado, por exemplo: “O que tem no escritório?”

  • C1. Olhe sua preparação. Talvez essa sala esteja lá e o que tem lá esteja canonicamente escrito, e você está preparado.
  • C2. Se não, talvez você tenha uma regra (“escritórios padrão têm um grampeador, uma máquina de escrever e uma cadeira para visitantes” etc) ou mecânica (como uma tabela aleatória com conteúdos). Use isto.
  • C3. Se você não tem nenhum desses, invente alguma coisa. Tente inventar algo que não vá ajudar ou atrapalhar muito os personagens. Pode ser algo sugestivo e que ajude a construir um clima, mas não devem ser 20 beholders zangados (ou 20 poções de cura grátis). Não se sinta mal: deixar que os mestres comecem "pequeno" é como obtemos novos mestres. Mas, tape os buracos, ou essa categoria de buracos, para as próximas sessões. Assim, com o tempo sua mestragem se tornará mais e mais sólida ♥︎.

Sempre trabalhe nessa ordem, de C1⇒C2⇒C3, somente indo para a próxima camada quando necessário.

Uma campanha construída nas verdades C2 e C3 não engaja tanto quanto outra que tem C1 com estruturas sólidas (in a cloud, bones of steel²), mas conforme você tapa buracos (como o C3 te instrui) sinta-se livre para preencher com mecânicas e soluções gerais (ex.: verdades do tipo C2). Assim você está construindo uma caixa de ferramentas para mestragem.

²in a cloud, bones of steel: referência a um poema de Charles Reznikoff. A autora tem um texto somente abordando esse assunto, mas em resumo significa estruturar a preparação em aspectos bem estabelecidos para interações consistentes (ossos de ferro - bones of steel) e aspectos mais sugestivos e esparso para serem trabalhados na mesa (cloud - nuvens).

Relevo do Papel de Parede


Coisas com pontas e partes cortantes³ são extremamente importantes de se ter preparado. É OK improvisar coisas para dar um “quê” a mais, como nomes, papel de parede, cores, etc. Por isso se vê tantas coisas na OSR que são apenas listas concisas de inimigos e seus DVs. Essa é a parte menos improvisável.

Quando eu coloco uma capitã bandida na preparação, eu me certifico que as estatísticas dela, ou referências a isso, estejam listadas. Se eu tenho uma boa ideia para o nome dela, suas roupas, alguns traços, tudo bem escrever isso mas os status devem ser “escritos em pedra” prioritariamente.

Agora, digamos que eles achem uma poção que faça eles teletransportarem através de paredes verdes. Repentinamente você precisará de uma tabela de cores para os cômodos que não estavam na sua preparação antes. Mas até eles terem essa poção, você tem uma folga na sua preparação.

Um jogo no qual todo papel de parede é improvisado não será satisfatoriamente blorb. De novo, “ossos de ferro” são necessários nessa “nuvem de descrição”. Então, prepare ao menos alguns papeis de parede no nível que conseguir. Mas você não precisa de muito.

³pontas e partes cortantes: em inglês essa expressão (points and sharp ends) é usada para se referir a parte mais complexa e/ou perigosa de algo.

Zoom no “Relevo” do Tempo


O tempo passa na velocidade necessária para os participantes (jogadores e Metre)  responderem às questões levantadas durante o jogo. “Eu conjuro Detectar Magia, o que eu encontro?”, “eu olho na gaveta da mesa, o que tem lá?”, “nós deixamos o vilarejo e vamos para cidade grande, o que acontece?”

Isso não é “cortar” (eu não gosto de metáforas de filmes) mas sim "acelerar" (no original fast-forwarding). Ou desacelerar, se necessário. O Mestre não deve tentar ditar a passagem do tempo dramaticamente, apenas mantenha as perguntas e respostas em mente quando chegar o momento. Se eles disserem “nós esperamos alguém chegar”, pergunte a eles por quanto tempo eles pretendem esperar, para que você saiba quantos rolagens de encontros terá, consumo de rações e etc.

Preparar é Diferente de Executar


Um bom Mestre preparando o jogo pode pensar em coisas como tema, justiça, balanço, coisas evocativas e etc. Mas quando você começa a executar (no jogo), todas essas coisas precisam ser jogadas fora.

Um mestre que prepara pode pensar longamente quantos lobos são apropriados na floresta para uma boa e divertida experiência de jogo ou uma boa experiência exploratória, mas quando você começa a sessão de jogo você está comprometido. Você não pode sair por aí mudando as coisas!

Podem acontecer coisas no jogo que sejam muito tediosas, muito desbalanceadas, muito fáceis, muito difíceis, mas isso precisa ser OK.

Blorb não é primariamente gamista (não é balanceado o suficiente para isso, algumas regiões são demasiadamente fáceis e outras demasiadamente difíceis). Mas serve bem para o gamismo em alguns modos.

O jogo é os jogadores contra o módulo (sendo homebrew ou não). O Mestre é um árbitro, não um oponente.

Quem cria o módulo deve ter uma mentalidade completamente diferente de quem vai mestrar o módulo.

É semelhante a criadores de enigmas e quebra-cabeças. É fácil fazer um enigma insolucionável, aqui vai um: 7E-&qz?-K>~mkW%s#sDumX~0gn%SmP=ZOCd7. Isso não é divertido. A ideia de criar enigmas é fazê-los num bom ponto entre fácil e difícil para que seja um desafio. Esse é meio que um bom ponto para o escritor do módulo também. Não necessariamente baseado em desafio, mas diferentes “brinquedos” interessantes de jogar.

No jogo de tabuleiro Zendo, uma vez que você escolhe uma regra e começa a aplicá-la, você não tem permissão para mudar essa regra até o final da partida. Novas edições de Zendo fazem você registrar sua regra em um cartão secreto, ao invés de guardar apenas na sua memória, para prevenir possíveis trapaças.

Mecânicas Diegéticas


Ter uma preparação comprometida com o estilo blorb te permite usar o que vou chamar de “mecânicas diegéticas”. Mecânicas simbólicas são as mecânicas que todos nós conhecemos e amamos, como “role 15 ou mais num d20”, “você ganha 40xp”, etc.

Mecânicas diegéticas são coisas ligadas às ações dos personagens no mundo ficcional. O Mestre tem acesso a notas que dizem coisas como: “Se eles puxarem a alavanca esquerda, vai dar bom. Se eles puxarem a alavanca direita, eles morrerão”. “Annie não quer falar sobre a Sarah”. “A estatueta amaldiçoada está escondida embaixo das camisetas na gaveta do quarto”.

Eu não estou atacando jogos como Spirit of the Century que foram feitos para serem mais fáceis de “pegar” e você não precisa prepará-los porque ao invés do Mestre ter que ter escrito onde a estatueta está, os jogadores podem fazer rolagens para ver se os personagens acham a estatueta ou não. Está tudo bem. Para eles. Isso aqui é blorb.

Nós temos um gloráculo (um glorioso oráculo de dados e preparação) e graças aos princípios Três Camadas de Verdade e Relevo no Papel de Parede nós conseguimos facilmente rascunhar um rico mundo para se explorar. Módulos e materiais ajudam muito nisso também ♥︎.

Com o gloráculo, nós conseguimos resolver essas situações através da conversa dentro do jogo, quando o jogador fala coisas como “eu amarro uma corda ao redor da alavanca direita para ter certeza que ficará presa até que eu saia da sala”. “Annie, como você está se sentindo? Você quer uma água?”. “Estou na sala de estar, tentando medir a estante de livros - a profundidade dela parece bater com a da parede?”.

Nos anos 90, e especialmente entre os anos 2000 e 2010, havia essa tendência em tornar coisas que facilmente poderiam ser mecânicas diegéticas em mecânicas simbólicas. Como o “marque um uso de ferramentas de aventureiro™” mecânicas no Dungeon World ou o Dado de Uso no jogo The Black Hack. Eu não concordo com essa tendência.

Nem todo gênero é sobre um inventário meticuloso - você pode executar um romance dramático de escritório sem saber quantos grampeadores tem em cada mesa - mas nas situações em que o equipamento é importante, são momentos únicos em que o jogador está se importando com a mesma coisa que o personagem dele deveria estar se importar. 

Isso geralmente acontece com mecânicas diegéticas. Você é transportado para o mundo do jogo:

  • “Quantas tochas eu tenho sobrando?”
  • “O que são essas estranhas alavancas na parede?”
  • “Qual é a dessa garota, e ela está escondendo algo?”
  • “Onde eu esconderia uma estatueta se fosse eu?”

Você está lá, mesmo que por alguns momentos, ao invés de estar apertando botões vazios a quilômetros de distância.

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Artigos Relacionados

Aqui vou listar alguns artigos de outros blogs que discutem os Princípios Blorb, essa lista pode aumentar conforme outros artigos forem descobertos e/ou publicados:

Artigos do próprio idiomdrottning que abordam Blorb:

Notas Finais

Além desse excelente texto, o idiomdrottning está repleto de ideias interessantes e diferentes (nem sempre relacionadas a RPG), algumas que estendem as ideias dos Princípios Blorb e outras complementares, além de analise de jogos, mecânicas e etc. Recomendamos que você visite o site, nesse link estão os textos relacionados à RPG: https://idiomdrottning.org/rpg

Pretendemos num futuro próximo trazer mais traduções e comentários desses outros manuais e manifestos para fomentar discussões sobre teorias por trás do jogar.

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2 comentários:

  1. Não conhecia o texto, achei demais. A tradução está excelente, preocupada com notas de rodapé para explicar ou contextualizar.
    Que venham outras traduções!

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